Espero. Ele surge. Entro. Olho para diante, onde caras curiosas me fitam. Atrás, um conjunto de pessoas anseia desesperadamente por um lugar. As portas fecham-se, o motor ruge, arrancamos.
Um passo em frente e recuo no tempo. Volto à era do império, da guerra, do ditador, dos pudores, da censura. Aqui, o que ouço é tão comum e rotineiro que, caso estivesse a contar isto publicamente, seria certamente acusado de blasfémia e maldizer por aqueles que desconhecem o nosso tão amado Portugal. Estes seres, que sobreviveram durante décadas e cujas marcas da idade se entranharam no corpo com o passar dos anos, só têm como assunto de conversa temas tão banais que desinteressariam o mais resistente espectador.
“Hoje fiz sopa para o meu netinho. Ai Maria, ele é tão bonitinho!” – diz uma senhora, já idosa, a outra num tom de voz tão estridente que levaria à loucura aqueles que habitam o Olimpo que, com certeza, se questionam se ajudar o barbudo, o zarolho e companhia a chegar à Índia foi uma decisão acertada. Se calhar, Baco fora mais inteligente. Na altura, o deus [Baco] considerou os navegadores da Ocidental Praia Lusitana um perigo para o seu domínio. Quase acertou, só que a ameaça não era para si nem para a sua época. O tempo é agora! Portugal é um perigo para si próprio. O “Conquistador”, caso nos esteja a ver agora, grita em agonia pelo desastre em que a Pátria mergulhou.
“Não podemos continuar assim”. Acordou-me para a realidade o som daqueles dois homens mais à frente, ambos de meia-idade provavelmente. Estou em pé, o autocarro prossegue a sua viagem.
“Isto está cada vez pior Manel”, dizia o senhor, já barrigudo, calvo.
“E que vais tu fazer? Daqui a nada precisas de bengala e de sopa bem passada, o nosso tempo já passou…” – responde o tal “Manel”, a quem o companheiro replica: “Se não formos nós quem será? Aqueles ali?”
Aquele comentário sarcástico fez-me olhar para trás dele. Uma transformação repentina! “Estou de volta ao meu tempo” – pensei.
Jovens, acima de quinze anos, estudantes, suponho, encontram-se sentados nas cadeiras finais do veículo. Contudo, aquela interrogação sarcástica – “Aqueles ali?” – fez-me olhar com outros olhos para o cenário que visualizava. E, após reflectir um pouco, penso que o futuro não podia estar em melhores mãos: o estudante universitário, embora presunçoso, fechado no seu mundo, é bombardeado com as barbaridades saídas das bocarras dos mais novatos, que são um verdadeiro ataque à inteligência.
Entre os (supostos) rapagões, que imagino estarem numa competição para ver qual deles tem o nariz mais empinado, discute-se desporto, mulheres, a quantidade de erva que fumaram naquele dia e de um tipo que levou um enxerto de porrada de outro que, pelos vistos, tem uma daquelas alcunhas excepcionalmente originais que estão na moda. Elas, por entre gritos e frases tão sonoras que fazem a voz das peixeiras do Bolhão parecer uma melodia extraordinária, discutem assuntos como: roupa, o rapaz do momento (cujo lugar é agora dividido, vá-se lá imaginar porquê, entre um “vampiro” com má higiene, um índio que gosta de se passar por cão por passatempo e um cantor de dezasseis anos com aparência de dez), falam mal de uma rapariga que supostamente se enrolou com o namorado de uma amiga delas, e muitos outros temas do mais fútil que pode existir.
Parece que eles são os “aqueles” a que o senhor barrigudo se referia. Sinceramente, não vejo o porquê de tanto sarcasmo na expressão dele.
Espera, o autocarro parou, as portas abriram-se, está na altura de sair. Amanhã ele estará à minha espera e eu esperarei por ele, para me recolher no mesmo local e entregar mais histórias que, por mais rotineiras e banais que sejam, me farão navegar nos limites da minha imaginação ilimitada para as compreender.
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