"Writing is a socially acceptable form of schizophrenia."
(E.L. Doctorow
)

"Words - so innocent and powerless as they are, as standing in a dictionary, how potent for good and evil they become in the hands of one who knows how to combine them."
(Nathaniel Hawthorne
)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Conversas de autocarro

Espero. Ele surge. Entro. Olho para diante, onde caras curiosas me fitam. Atrás, um conjunto de pessoas anseia desesperadamente por um lugar. As portas fecham-se, o motor ruge, arrancamos.

Um passo em frente e recuo no tempo. Volto à era do império, da guerra, do ditador, dos pudores, da censura. Aqui, o que ouço é tão comum e rotineiro que, caso estivesse a contar isto publicamente, seria certamente acusado de blasfémia e maldizer por aqueles que desconhecem o nosso tão amado Portugal. Estes seres, que sobreviveram durante décadas e cujas marcas da idade se entranharam no corpo com o passar dos anos, só têm como assunto de conversa temas tão banais que desinteressariam o mais resistente espectador.

“Hoje fiz sopa para o meu netinho. Ai Maria, ele é tão bonitinho!” – diz uma senhora, já idosa, a outra num tom de voz tão estridente que levaria à loucura aqueles que habitam o Olimpo que, com certeza, se questionam se ajudar o barbudo, o zarolho e companhia a chegar à Índia foi uma decisão acertada. Se calhar, Baco fora mais inteligente. Na altura, o deus [Baco] considerou os navegadores da Ocidental Praia Lusitana um perigo para o seu domínio. Quase acertou, só que a ameaça não era para si nem para a sua época. O tempo é agora! Portugal é um perigo para si próprio. O “Conquistador”, caso nos esteja a ver agora, grita em agonia pelo desastre em que a Pátria mergulhou.

“Não podemos continuar assim”. Acordou-me para a realidade o som daqueles dois homens mais à frente, ambos de meia-idade provavelmente. Estou em pé, o autocarro prossegue a sua viagem.

“Isto está cada vez pior Manel”, dizia o senhor, já barrigudo, calvo.
“E que vais tu fazer? Daqui a nada precisas de bengala e de sopa bem passada, o nosso tempo já passou…” – responde o tal “Manel”, a quem o companheiro replica: “Se não formos nós quem será? Aqueles ali?”

Aquele comentário sarcástico fez-me olhar para trás dele. Uma transformação repentina! “Estou de volta ao meu tempo” – pensei.

Jovens, acima de quinze anos, estudantes, suponho, encontram-se sentados nas cadeiras finais do veículo. Contudo, aquela interrogação sarcástica – “Aqueles ali?” – fez-me olhar com outros olhos para o cenário que visualizava. E, após reflectir um pouco, penso que o futuro não podia estar em melhores mãos: o estudante universitário, embora presunçoso, fechado no seu mundo, é bombardeado com as barbaridades saídas das bocarras dos mais novatos, que são um verdadeiro ataque à inteligência.

Entre os (supostos) rapagões, que imagino estarem numa competição para ver qual deles tem o nariz mais empinado, discute-se desporto, mulheres, a quantidade de erva que fumaram naquele dia e de um tipo que levou um enxerto de porrada de outro que, pelos vistos, tem uma daquelas alcunhas excepcionalmente originais que estão na moda. Elas, por entre gritos e frases tão sonoras que fazem a voz das peixeiras do Bolhão parecer uma melodia extraordinária, discutem assuntos como: roupa, o rapaz do momento (cujo lugar é agora dividido, vá-se lá imaginar porquê, entre um “vampiro” com má higiene, um índio que gosta de se passar por cão por passatempo e um cantor de dezasseis anos com aparência de dez), falam mal de uma rapariga que supostamente se enrolou com o namorado de uma amiga delas, e muitos outros temas do mais fútil que pode existir.

Parece que eles são os “aqueles” a que o senhor barrigudo se referia. Sinceramente, não vejo o porquê de tanto sarcasmo na expressão dele.

Espera, o autocarro parou, as portas abriram-se, está na altura de sair. Amanhã ele estará à minha espera e eu esperarei por ele, para me recolher no mesmo local e entregar mais histórias que, por mais rotineiras e banais que sejam, me farão navegar nos limites da minha imaginação ilimitada para as compreender.

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